quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

[Resenha] Koe no Katachi

 


Apresentação e um aviso aos leitores.

Bem, talvez eu seja a última pessoa a resenhar esse filme, uma vez que o mesmo foi um grande sucesso à época de seu lançamento, mas, ainda assim, nada impede de eu registrar as minhas impressões, e com bastante profundidade, por sinal. Esta resenha não restringirá apenas a contar a respeito da trama e do tema evidente de início – bullying escolar –, como também tratará de analisar a personalidade dos personagens e a consequência de seus atos, que envolve não apenas uma única pessoa, mas sim, todos ao redor.

Para melhor aprofundamento do tema, serão inseridas ao final desta resenha, informações a respeito da língua de sinais e da educação especial, em um paralelo com o contexto do filme, com a única finalidade de informar.

Em se tratando de linhas gerais apresentarei minhas impressões sobre as dificuldades de uma pessoa com necessidades especiais em um ambiente escolar, por conhecer alguns dos sentimentos que rondam o coração destas pessoas, pois já passaram pelo meu também. Mas já adianto que indivíduos com necessidades especiais não são “coitados”, nem são a “minoria”, e nem estão “à margem da sociedade”, pelo contrário, eles fazem parte dela, e a tornam mais completa.

Espero do fundo do meu coração que, esta resenha possa lhes servir como um amadurecimento e enriquecimento pessoal e que possam lhe inspirar a ser melhores e convencer quem ainda não assistiu, de ver o filme com maior sensibilidade, aproveitando e extraindo tudo aquilo que esta obra tem a oferecer.

Também espero que, quando forem assistir o façam de mente aberta, sem rotular nenhum país ou sociedade, porque os problemas sociais e humanos são os mesmos em qualquer parte do mundo. E o preconceito é um defeito presente naqueles que, de alguma forma, não entendem seu próximo, e deixam com que sentimentos negativos como o medo, a raiva e a frustração, não lhe deem chance de conhecer alguém realmente especial, em todos os sentidos da palavra.

Tenham todos uma ótima leitura!

Carinhosamente,

Rebeca

 

Primeira Parte:

Contexto e análise básica do filme: atos e consequências

A trama se inicia com o protagonista Ishida Shoya, que tem um passado complicado em seu ambiente escolar, e que por isso, passou a descontar seus problemas nos outros, mais especificamente em Nishimiya Shoko, a mocinha da história, que, por sua vez, é deficiente auditiva, e que sofre com as malcriações e o bullying por parte de Shoya e Ueno Naoka, a “peste” de plantão, que tem em todo enredo shoujo – esta é de dar bastante raiva.

Por mais que ele tenha sofrido nas mãos dos demais colegas – que também eram valentões –, nada justifica o fato de ele descontar a tristeza e a raiva em outra pessoa. Esse também é um erro cometido por Ueno, que não muda sua postura até o final da trama. É claro que aquilo que as pessoas ao nosso redor nos fazem tem intensas consequências a nós, no entanto, cabe a cada um de nós saber lidar com o problema e superá-lo, sabendo driblar sentimentos negativos que possam entrar em nosso coração. Maltratar alguém não melhora e nem resolve o problema de ninguém, muito pelo contrário, apenas o faz crescer, a ponto de se tornar uma bola de neve enorme, da qual, em determinado momento, você se sente completamente incapaz de sair, acarretando dessa forma, em algo ainda maior, como depressão, desistência e suicídio, tamanha a vergonha de nossos atos inglórios.

Esta, para mim, é a maior lição que o protagonista Shoya pode nos transmitir e, modéstia à parte, a maneira mais sucinta de explicitar a sua história de vida em poucas palavras.

 

Bullying: Reagir ou não? As respostas às agressões

Muitos podem estranhar o fato de que, no início da trama, Shoko não reagia às agressões e maus-tratos que sofria por seus colegas de classe, principalmente por Shoya, e apenas sorria em resposta. Mas, a resposta é simples: ela simplesmente não entendia o motivo da agressividade, sendo esta, a velha história do: “se eu nunca te fiz nenhum mal, então, por que está fazendo isto comigo?”. E neste dilema se encontra um dos maiores enganos – se é que se pode colocar assim – de quem é gentil demais: achar que todo mundo tem o mesmo coração que você. E, infelizmente, nem sempre todos os sentimentos e atitudes serão recíprocas, pois depende do caráter, da maturidade e da capacidade de cada um de nós de lidarmos e reagirmos com a situação.

Chega um certo momento em que a pessoa não aguenta mais ser sempre desprezada pelo agressor, então, ela tenta se expressar de uma maneira diferente. Quem tem necessidades especiais, geralmente procura se defender como pode. No caso da protagonista, como ela é surda-muda, teve uma cena em que ela mordeu o braço de Shoya para demonstrar sua braveza, depois o empurrou e bateu várias vezes, deixando transparecer a raiva, a indignação, angústia e a tristeza que carregava consigo em seu coração.

Por ser surda, a maneira de ela se defender era pelo tato, e claro, pelo seu olhar, através das lágrimas, que ilustravam toda a dor que sentia por dentro, já que a única coisa que ela queria, era fazer amizade com ele.

Me identifiquei bastante com essas cenas, pois apesar de ser uma situação completamente diferente, eu também me defendia à minha maneira. Como eu não podia correr para lá e para cá, eu puxava os cabelos das pessoas, quando era menor, ou puxava pelo braço com força, além de que anos mais tarde, quando tirei a vergonha, aprendi a me defender verbalmente, com a língua afiada que tenho até hoje! (a minha xará que o diga!)

Não cheguei a sofrer bullying a este ponto, como retratado no filme, até porque sempre tive minha família, professores e algumas colegas que me acompanhavam, mas me sentia bastante solitária e excluída pela maior parte dos meus colegas de classe. Por isto, sempre disse que, na escola, meus melhores amigos eram os professores, e não os alunos.

No caso da protagonista, que teve uma história bem mais triste que a minha, e com intenso bullying e quadro de depressão, ela tinha a família, principalmente sua irmã Yuzuru, que constantemente tirava fotos de animais e insetos mortos para lhe convencer de que a morte era feia, horrenda e triste, e que não valia a pena ter tal fim, no entanto, não deu muito certo, porque Shoko já estava consumida por seus sentimentos negativos e sua frustração, maior que tudo. E esse será o assunto do próximo tópico desta resenha: “A depressão de cada um de nós”; seus motivos e consequências.


A depressão de cada um de nós

Por seus atos infelizes, a vergonha, a angústia e o arrependimento foram tão grandes e intensos que o protagonista Shoya optou por “deixar sua vida em ordem”, para em seguida, se matar. Quanto à Shoko, a menina sentia-se dependente dos outros, se ela estivesse prendendo os demais a ela, os privando de viverem sua própria vida, ter sua própria rotina, uma vez que faziam de tudo por ela. A exemplo disso, temos a irmã dela, Yuzuru, que não ia para escola constantemente, nem tinha muitos amigos ou saía para se divertir, porque a maior prioridade era acompanhar e proteger a mais velha.

Por isso, Shoko sentia-se incomodada, triste e deprimida, pois pensava nela mesma como um peso aos demais ao seu redor, como se os estivesse limitando, já que tudo girava em torno dela, e então, pensou que, se ela se ela fosse para o céu, ninguém mais sofreria por sua causa. A capacidade de empatia de uma pessoa com necessidades especiais é muito maior do que a de um indivíduo que se diz “normal”. É uma empatia muito mais profunda e intensa, e às vezes, (nos casos mais extremos como o da protagonista), chegam a ter pensamentos como os descritos anteriormente.

E, verdade seja dita, com ou sem necessidades especiais, uma vez que a pessoa pensa que sua própria existência e presença são um incômodo não apenas aos demais, mas a si mesmo, se deixando levar por uma angústia maior do que qualquer outra coisa, estar de corpo presente já não faz sentido, nem vale a pena. Afinal, se você não tem uma missão a cumprir nesta Terra, você é só “volume”.

No caso, Shoko sentia que só estava fazendo “volume”, porque era protegida por todos, mas se sentia impotente de proteger alguém, de retribuir o amor que recebia constantemente. Em outras palavras, na cabeça dela, ela não tinha uma missão “concreta”, já que tinha a impressão de não fazer nada por ninguém.

Além de que, não querer ser um peso, nem “dar trabalho” para os demais em nosso entorno, é um sentimento que já rondou o coração de todo deficiente físico (ou a maioria deles), sem necessariamente chegar ao ponto de querer se suicidar (isso varia a cada caso e pessoa), mas com certeza, em algum momento da vida, alguém já deve ter ficado triste ou quieto no seu canto para não incomodar ninguém.

Aliás, é por esse motivo que a protagonista se mantinha sempre tímida em sala de aula, no início da história – ok, ela era surda-muda, no entanto, em circunstâncias normais, algumas pessoas pensariam que a menina podia ao menos fazer um sinal, pedindo ajuda ou algo assim. Só que ela não fazia simplesmente para não ser um incômodo, e também, devido à sua natureza introvertida.

Essa é uma coisa da qual eu entendo bem, já fiz isso várias vezes, para “dar o menos trabalho possível”, e em virtude disso, eu era sempre calada, e só pedia ajuda quando era realmente necessário. Por sorte, eu tinha uma colega de classe de quem era próxima, que me ajudava. Está aí outro ponto importante: as pessoas com necessidades especiais só se abrem com quem confiam e tem muita intimidade, porque sabem que as mesmas não se importarão de estenderem a mão, quando precisarem.

O desafio é o fato de que, de 100 pessoas, apenas uma vai se dispor a ajudar, enquanto os demais se manterão distantes, por não saber lidarem com alguém diferente delas ou às vezes, por deixarem passar. No longa-metragem, para ilustrar isto, há uma cena em que o professor não percebe que a protagonista não estava conseguindo entender a disciplina, por ser surda, e neste caso, não foi por maldade ou má intenção. É que às vezes, as pessoas se deixam levar tanto pela correria do dia-a-dia que acabam deixando passar despercebido os pequenos detalhes, sem satisfazer as necessidades de um aluno especial.

Seja como for, é sempre importante estar disposto a conhecer e ajudar quem precisa e, principalmente, no caso das pessoas com necessidades especiais, fazer com que elas se sintam parte de um grupo social – como uma sala de aula, por exemplo – evitando deixá-las isoladas e também nunca fazê-las sentir um estorvo, um peso, mas fazê-las enxergar que elas têm com quem contar, amigos em quem confiar e compartilhar as coisas, e que são sim, essenciais na vida dos outros, em convívio social, podendo até mudar a perspectiva de alguém, os incentivando a serem melhores, como aconteceu com Shoya, que foi de moleque valentão a um companheiro com muita sintonia.

Um gesto de carinho pode transformar um pensamento, mudar o dia de alguém, e alegrar sua vida. Então, pensem bem em suas atitudes, pois aquilo que não parece ser “nada”, para você, pode fazer uma diferença enorme ao seu próximo.

Quem tem necessidades especiais também tem a alma pura, e deseja ter uma relação de amizade verdadeira, com uma pessoa que tem o coração igualmente puro, e ama os outros por dentro, e completamente. Se a pessoa especial confiar em você, ela vai te dar todo o amor, da maneira mais genuína, contudo, se não confiar, vai demorar para se aproximar.

Desta forma, minha dica é: demonstre afeto e ame sem medo. Esta, pode ser a melhor amizade e a melhor descoberta da sua vida! Seja grato por ter do seu lado alguém que te ensina a ser cada vez mais humano.

Em uma narrativa tão intensamente triste, é possível ter comédia?

A resposta é “sim”. Quando os personagens estão no Ensino Médio e começam a se gostar, o protagonista não sabe bem como dizer as coisas à Shoko, e se atrapalha todo por conta da timidez. Essas cenas conseguiram me arrancar algumas risadas e dar um caráter mais leve à história, que em sua primeira metade é intensamente triste, uma vez que retrata o bullying e o preconceito de maneira bastante realista.

           

Segunda Parte: Ficção x Realidade

Ficção x Realidade: Comunidade Surda no Japão 

Achei interessante produzirem uma adaptação de Koe no Katachi em 2016, porque em março deste mesmo ano, uma proposta clamando pela adoção do “Japanese Sign Language Act” (Ato de Língua de Sinais Japonesa, nome provisório em inglês), reconhecendo a língua de sinais como tendo o mesmo status legal que a língua japonesa comum, foi aprovada por todas as 1788 casas legislativas locais ―100% ― em menos de 3 anos, desde que a proposta foi aprovada pela primeira vez na cidade de Hakusan, Prefeitura de Ishikawa, no mês de junho de 2013

A Língua Japonesa de Sinais (JSL, na sigla em inglês) foi reconhecida oficialmente em 2011, mas ainda havia atritos sobre a mesma, porque alguns alegavam que era um idioma distinto do japonês falado, utilizado apenas pela comunidade surda, enquanto que outros apontavam que a língua de sinais poderia ser ensinada e aprendida na escola.

A importância da língua de sinais para um deficiente auditivo, em qualquer lugar do mundo é prover a facilidade e a independência social e de comunicação, fato que é mostrado no anime, quando a professora tentou ensinar língua de sinais aos alunos – ainda que não estivessem muito interessados – dizendo que era mais fácil para Shoko se comunicar. De fato, anos depois, quando Shoya aprendeu a linguagem de sinais, a menina se sentiu bem mais confortável, e passou a revelar seus sentimentos mais íntimos a ele com mais facilidade, e a ter uma vida social normal, podendo sair para passear sem problemas, pois ambos conseguiam se entender.

Quanto aos estudos, como sofria bullying, Shoko mudou de escola e, em uma das cenas, já no Ensino Médio, é revelado que ela frequenta uma escola para surdos. Isto tem um fundo de verdade, pois no Japão há várias instituições de ensino para portadores de necessidades especiais e inúmeras que são especialmente voltadas aos deficientes auditivos. A exemplo disso, podemos citar a Meisei Gakuen School for the Deaf, localizada na cidade de Tokyo, uma escola que oferece o ensino através do visual – de leitura e escrita – e, portanto, de forma bilíngue, tanto com a alfabetização “comum” quanto através dos sinais, tendo estes últimos como a “primeira língua”

Para aqueles que desejam colocar seus filhos em uma escola regular, e não em uma escola diferenciada, o Japão possui uma política voltada aos portadores de necessidades especiais. Nas escolas regulares, de Ensino Fundamental I e II, há “salas especiais”, que são salas pequenas para crianças com deficiências relativamente leves.

Há também um projeto de sala de recursos – estabelecidas nas escolas regulares – nas quais os alunos que estão matriculados e estudam em sua maior parte do tempo nas aulas regulares, podem visitá-la a fim de receberem uma atenção especial. As deficiências inclusas neste projeto de sala de recursos são: dificuldades de linguagem, autismo, distúrbios emocionais, baixa visão, deficiências auditivas, dificuldades de aprendizagem, TDAH, dentre outras


Conclusões finais:

Uma das coisas mais bonitas de se ver é o amadurecimento do protagonista. Ele quis mudar para redimir seus erros e, a partir do momento em que passa a conviver com Shoko, a entender mais seus sentimentos e necessidades, se torna um ser humano mais maduro e completo, sentindo que tem a missão de proteger alguém especial.

Não tem à toa que o amor muda as pessoas: porque a gente se esforça sempre mais quando sabe que tem alguém por quem lutar, seja pela nossa família, amigos ou uma (possível) namorada.

Ambos superaram seus medos e fragilidades, e conseguiram seguir em frente. Por isso, para mim, mais do que uma narrativa sobre “bullying”, esta é uma história sobre superação pessoal, perdão, recomeço, envolvendo acertos e erros humanos.

Uma história que prende do início ao fim, e que a cada passagem, nos traz uma lição de vida, e a mensagem de que, se quisermos podemos ser melhores. Sempre. A cada dia, a cada gesto, a cada passo.

 

Fontes de pesquisa utilizadas

JAPÃO EM FOCO. “Nihon Shuwa – A Língua de Sinais no Japão”

MEISEN GAKUEN FOR THE DEAF “Our Mission and Vision – JSL as the First Language”. 

MINISTRY OF EDUCATION, CULTURE, SPORTS, SCIENCE AND TECHNOLOGY (MEXT). “Special Needs Education”

THE NIPPON FOUNDATION. “Toward Adoption of “Japanese Sign Language Act”. 

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