“A Viagem de Chihiro”
e a essência humana
Para muitas pessoas, o
longa-metragem “A Viagem de Chihiro” pode ser apenas mais um filme de fantasia,
ou no máximo, uma obra que ganhou prêmios. Entretanto, para mim, este filme
retrata muito da essência humana, dos valores que realmente importam a nós, e
as consequências que aparecem quando nos desvinculamos deles e nos deixamos
levar pela ganância, sede de poder e por bens materiais, corrompendo nossa
alma, valores e princípios.
No início da trama, Chihiro era
apenas uma menina de dez anos que pouco sabia sobre sua vida, ou a falta que
faz a presença de sua família, e sobre si mesma. Mas, fato é que a garota já
estava pressentindo que havia algo de muito estranho naquele túnel – e no
restaurante que seus pais foram – como um “aviso”, que apenas ela era capaz de
sentir.
Mesmo sendo aparentemente mimada e
geniosa nas primeiras cenas, Chihiro era a única desde o começo que tinha a alma
pura, e que não se deixou levar por vontades momentâneas e caprichos.
A famosa cena em que os pais da
garota se transformam em porcos representa a gula. Esta cena, assim como várias
outras do filme, sob a minha interpretação pode ser analisada da seguinte
forma: quando você se corrompe, você se torna um monstro. Um monstro nada mais
é do que uma criatura que possui todos os sentimentos ruins e cujas virtudes
não mais existem em seu coração.
Todas as aquelas pessoas que
“moram” na Casa de Banho são na verdade, pessoas que se corrompem fácil, pelo
que aparentemente lhe traz algum benefício. Isso se prova com a aparição do Sem
Rosto, um fantasma que entregava ouro aos outros. Na minha concepção, ele
estava fazendo aquilo para ver a quão pura é alma de alguém e o quanto estes
indivíduos eram capazes de resistir à tentação. Aqueles que não resistiram,
foram engolidos por ele, como o sapo, por exemplo. Por isso, ele também
desejava dar à Chihiro a pequena fortuna que tinha, e ficou feliz e triste ao
mesmo tempo, quando viu que ela não aceitou seu “presente”; feliz, por saber
que ela mantinha a sua essência, diferentemente de todo o resto, mas, triste
porque ele estava oferecendo aquilo de coração, justamente por saber da índole
da menina.
Quando a protagonista chega neste
“mundo paralelo”, ela se vê em uma missão de salvar essas almas, de enfrentar
os desafios que essa “aventura” lhe proporcionou, mas, principalmente, de
superar a si mesma e de se autodescobrir. A temática da autodescoberta e
amadurecimento pessoal é utilizada em todas – ou quase todas – as obras do
autor Hayao Miyazaki, que sempre cria personagens principais que precisam
amadurecer enquanto seguem sua jornada.
Esse é um pensamento milenar que
pode ser encontrado na filosofia budista: Buda dizia que a vitória sobre si
mesmo é maior de todas as vitórias. De fato, podemos perceber o quanto isto é
verídico na prática ao observarmos as personagens do Studio Ghibli, como a
Chihiro, por exemplo.
Quando ela sentiu que podia
enfrentar o seu primeiro obstáculo, superando seus medos e dúvidas, e os
enfrentando, também teve a impressão de que era capaz de superar todos os
outros eventuais desafios que encontrasse por lá. Neste meio tempo, descobriu
ser mais forte do que imaginava, ao chegar até os aposentos de Yubaba, a temida
governante daquele mundo à parte.
Ninguém teve coragem de
enfrentá-la e continuar com seus princípios vívidos dentro de si, a não ser
Chihiro, chamada de “Sen” pela bruxa. Todos se viam em um beco sem saída, onde
a única alternativa era ser subordinada a ela, devido ao fato de que nenhum dos
súditos tinham coragem suficiente de ir contra as suas ordens, e lhe dizer que
ela estava agindo erroneamente.
Como sempre digo, e minha xará
sabe bem disso, pessoas de pouca fé e de espírito frágil são facilmente
influenciadas. Se tem uma coisa que a vida nos ensina é que precisamos ser
corajosos e persistentes a cada passo, afinal, como já afirma a sabedoria
budista, nós somos consequência daquilo que pensamos, e também, segundo o
próprio Buda: “A causa da derrota não está nos obstáculos ou no rigor das
circunstâncias, está na falta de determinação e desistência da própria pessoa.”
A coragem é uma virtude para poucos.
Yubaba para mim, representa todo o mal, que rouba as mentes e almas de pessoas
inocentes – e fácil de serem manipuladas – como seus subordinados, tornando-os
dependente dela, como se a única “salvação” – em todos os sentidos da palavra –
para aqueles indivíduos, ainda que para isso, tivessem que abdicar de sua
liberdade de pensar e sentir.
A perda da identidade é um dos
maiores, senão o maior mal da humanidade, e uma temática bastante explorada e
evidenciada nesta obra. Isto fica bem explícito quando Yubaba diz a Chihiro que
se chamará “Sen” (o primeiro kanji do nome dela pode ser lido dessa forma), ou
seja, quem ela foi ou deixou de ser, e sua identidade verdadeira não
interessam, importa quem ela era naquele momento; uma simples funcionária da
Casa de Banho, que limpa o chão e as banheiras todos os dias, sem mais nenhum
objetivo de vida em mente além da “sobrevivência”.
A diferença entre a protagonista e
os demais personagens, é que ela era a única que se recordava quem era de
verdade, e quem era sua família, motivo pelo qual conseguiu sair de lá e salvar
seus pais que ainda permaneciam em forma de porcos
Não sei se alguém reparou nisso,
mas, NINGUÉM naquela “Casa de Banho” tinha família. Eles não sabiam quem eram
ou foram, de onde vieram, como foram parar lá, e nem quem eram sua família,
qual era sua história de vida, nem mesmo o seu próprio nome. Não podemos
esquecer que a família é a nossa base, nosso principal alicerce.
No entanto, quando a gente se
deixa levar pela ganância e pelo materialismo, a pessoa consegue enxergar só
aquilo que satisfaz seu próprio ego sem se importar com mais nada; de onde
veio, para onde vai, quem você é, ou quem está no seu entorno, tampouco
valorizar o seu passado e as pessoas que fizeram parte dele, porque sua única
preocupação vai ser satisfazer seus desejos momentâneos, sem se lembrar de
lutar por alguém precioso.
Sua vida se resume apenas a “ter
as coisas”, e a viver de forma supérflua com o passar dos dias, sem nenhuma
motivação ou razão de melhorar. E quando você não tem por quem lutar, a sua
vida, ou pelo menos seu cotidiano, se torna bastante sem sal. Por este motivo,
a perda e o desprezo pela família também é a mais trágica perda do ser humano,
porque, sem uma base sólida, o resto não faz sentido.
Se engana quem pensa que ser
“independente” é algo benéfico. Só precisa de “independência” e “liberdade”
aquele que não respeita sua família, e nem se recorda do quanto ela é
importante para que sejamos sempre pessoas completas, espiritual e
emocionalmente falando. Proteger a família é o maior dever, e ter alguém que se
ama, é a maior dádiva que podemos ter.
Ao meu entender também, as pessoas
e os “visitantes” da Casa de Banho, não são apenas aquelas que desprezaram seus
familiares, como também foram desprezadas pelos mesmos. São as almas
esquecidas, que nunca mais foram lembradas pelos seus entes queridos, já que,
uma vez que seu coração está distante e sua alma bastante rasgada, as pessoas
que você mais ama, e que mais te amam se afastam de você. Assim sendo, fica a
lição: não seja egoísta, mesquinho, ganancioso. Nada no mundo substitui a nossa
família, porque somente com ela ao nosso lado, é que podemos ser quem somos de
verdade.
No fim das contas, aquela Casa de
Banho e todos que nela habitam/visitam, representam todo o mal, todas as coisas
ruins que existem, e o lado negro do ser humano.
O Caráter de cada um e as referências de “Alice no País das
Maravilhas”
Importante: A análise feita aqui reflete apenas as minhas percepções relacionando ambas as obras, sem vínculo com nenhuma outra fonte secundaria, como sites ou blogs alternativos
Algumas pessoas vinculam o filme
“A Viagem de Chihiro” ao clássico infantil “Alice no País das Maravilhas”, de
Lewis Carroll. No longa-metragem há algumas referências diretas ao livro, como
por exemplo, uma portinhola que a protagonista precisa atravessar para que
chegue ao seu destino na Casa de Banho.
Outras, por sua vez, são referências
menos evidentes, que devem ser inferidas a partir de uma análise do
comportamento das personagens ou suas características mais marcantes. Quem
disse que precisa ser um coelho para escoltar uma menina “perdida”? Haku, um
misterioso garoto a levou a um mundo totalmente desconhecido. No fundo, ele
sabia que apenas ela poderia salvar a Casa de Banho, como o Coelho também sabia
que Alice deveria ser a escolhida para ir àquele mundo.
Entretanto, assim como na história
de Alice, Haku ficou “encantado” pela magia do lugar, e desenvolveu a vontade
de ser um mago, e não mais quis sair de lá. Porém, ao contrário dele, Chihiro,
que é análoga à Alice não “se encanta” com o local, pelo contrário, ela fica
assustada com algo que ela nunca viu antes, ainda mais com tantos monstros ao
seu redor! Nada parecido com o “País das Maravilhas”, onde tudo é lindo e
maravilhoso, idealizado pela imaginação de uma criança. A Casa de Banho é bem
ao contrário disso, pois ela representa a realidade nua e crua dos corações
corrompidos das pessoas, em que uma criança tem que se superar para
“sobreviver” naquele local.
Analogamente, ambos os mundos
representam os “desejos” do ser humano. Todavia, enquanto no livro de Alice
aquele “universo encantado” representa o fato de que nem tudo precisa ter uma
lógica racional, mas a intuição do coração de uma criança e a pureza dela, a Casa de Banho se refere àqueles que possuem
seus corações destruídos, e quem carrega a “pureza” de Alice é Chihiro.
Ainda neste paralelo entre as duas
protagonistas, a autodescoberta também faz parte do clássico de Lewis Carroll,
considerando-se que Alice não fazia ideia do que precisava fazer lá e quem ela
era em seu interior. Ambas as garotas, em algum momento de suas respectivas
narrativas, não sabiam para onde prosseguir em seu caminho. Em uma das cenas em
que Chihiro pede a Haku para acompanhá-la e ele diz que ela não pode fazer isto
por ela, eu me recordei de um célebre conselho que a pequena Alice recebeu: “Se
você não sabe onde ir, qualquer lugar serve”
O momento em que Chihiro vai até
Yubaba, a maléfica governante, lembra quando Alice enfrentou a Rainha de Copas.
Por falar nisso, Yubaba se assemelha bastante à Rainha Vermelha, por ser bem
autoritária, daquele jeito que conhecemos. De outro lado, sua gêmea Zeniba se
parece com a Rainha Branca, devido à sua personalidade pacífica, calma e
tranquila de ser.
Na animação, é dito que Yubaba e
Zeniba são partes de uma mesma pessoa. Ainda que pareça loucura, faz algum sentido,
se pararmos para pensar no fato de que a personalidade do ser humano é
realmente complexa, dadas as circunstâncias de que, ninguém é 100% mau e nem
100% bom o tempo inteiro. Somos uma mistura de ambos os elementos, e as nossas
escolhas refletem aquilo que mais alimentamos, afinal, a bondade está naqueles
que possuem seus corações no lugar certo, e têm discernimento para agir correto
O Sem Rosto se parece com o Gato
Risonho, porque sempre ajuda a protagonista no que ela necessita, e ele some e
aparece durante algumas cenas, às vezes prestando ajuda às escondidas, em sua
forma “invisível”, como o Gato.
Por fim, a referência direta mais clara em relação ao enredo, é que as cenas finais do longa são exatamente iguais às do início, e se encontra com seus pais, da mesma maneira que a Alice não sabe se tudo aquilo foi real ou um sonho, e logo dá de cara com sua irmã mais velha, em um dia de sol.
Conclusões Finais
“A Viagem de Chihiro” é um filme
composto por elementos metafóricos que nos ensinam muito sobre a essência do
ser humano e as consequências que ocorrem quando a perdemos, nos prendendo
apenas ao material, e não ao espiritual.
Cada personagem tem uma intenção
diferente ao estar ali, uma mensagem para transmitir ao telespectador,
principalmente a mocinha da história, que superou a si mesma e pode enfrentar
todas as provas em sua jornada, tornando-se um ser humano melhor e mais capaz.
A comparação e a possível
inspiração no clássico de Lewis Carroll nos permite enxergar os valores humanos
de forma lúdica e metafórica, ao mesmo tempo em que nos exige uma capacidade de
inferência e interpretação mais aguçada dos significados que elas carregam, sendo
assim uma excelente maneira de unir o útil ao agradável. Ao mesmo tempo em que
exercitamos nossa mente e edificamos nossa alma, somos capazes de ter um
momento de prazer ao assistir esta animação.
Hayao Miyazaki foi realmente um
gênio, e nos brindou com um grande presente ao colocar nos pequenos detalhes,
as grandes mensagens, nos proporcionando uma enorme lição de vida através de um
enredo cativante, em uma obra que ficará para sempre no imaginário popular de
inúmeras pessoas ao redor do mundo – e em nossos corações também.
Pode se dizer que “A Viagem de
Chihiro” não se trata apenas de uma viagem física, a entrada para um “mundo
paralelo e alternativo”, mas sim, uma viagem interior, para dentro de nós
mesmos, em uma missão que só nós podemos cumprir com êxito: a autodescoberta.
Dito estas palavras, lhes deixo
uma marcante passagem de “Alice no País das Maravilhas”: “Tudo tem uma moral se
você simplesmente notar”
Espero que esta resenha lhes tenha
inspirado a serem pessoas melhores, e lhes auxiliado a compreender esta obra com
um outro olhar, bem mais profundo e engrandecedor, sem se limitar apenas à
parte básica de entretenimento, e ao invés disto, ter sido capaz de adentrar e
tocar seus respectivos corações.
Espero também que a minha xará tenha gostado desta pequena resenha. Afinal, dedico este texto a ela.
Amiga, agradeço muito pela resenha dedicada a mim. Foi o melhor presente de aniversário ❤❤
ResponderExcluirAmei as palavras que você escolheu para escrever, como sempre, ficou ótimo. A sua reflexão foi bem profunda, você é muito inteligente, sempre consegue entender algo a mais no entretenimento. Quando eu for asisstir vou apreciar muito mais.
Beijos!😘😘
*assistir
ExcluirOi, xará! Que bom te ver aqui!
ExcluirFico muito feliz que tenha gostado do presente! Eu fiz de todo o coração, e com muitas análises psicológicas e comportamentais do jeitinho que você gosta! Tem mais presentes pra você ler e comentar ainda
Te amo!
Pois é. Eu vi e já li alguns😍😍 kkk
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